sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O Difícil Caso de Amor entre Gui e seu Andróide

  Gui.
  Todo mundo conhece Gui.
  É um cara sociável, calmo, tranqüilo. Gui é um sujeito da paz, como se diz por aí. Mas, há alguns dias, tem feito loucuras, como ninguém jamais imaginou que ele fosse capaz. Tudo por amor, lhes asseguro! Tudo por amor.
  Corre, aliás, pela cidade, o boato de que ele acaba de ser internado num hospício. Ou num asilo psiquiático, como alguns têm preferido chamar. Bem, seja asilo, sanatório, clínica psiquiátrica ou hospício, bom auspício não é para o pobre Gui, ser interrado num local como este, já que isto somente vem a agravar a causa de sua suposta loucura.

  Todo este drama começa, senhores, na quinzena passada. O pai de Gui, desejoso de lhe dar um presente de aniversário sem precedentes, deu-lhe Angina_Nº1, a última novidade em robótica e produção de andróides, com aparência extremamente fiel à humana. O modelo recebeu este nome porque, apesar do avanço da tecnologia, andróides ainda são, naturalmente, pesados, e, numa fase inicial dos testes o então não-nomeado robô caiu sobre o seu criador, deixando-o preso sob todo o seu peso. No lançamento oficial do modelo, ele chegou a declarar: "Este andróide é de tirar o ar, vocês vão ver!"
  De tirar o ar, mesmo. O riquíssimo pai de Gui quase desistiu, ao saber o preço. Mas, seu filho havia passado no vestibular, e já tinha um carro. O que lhe dar de presente. "Nada!", disse a mãe do rapaz, "Ele não fez mais do que sua obrigação!". Mas não seria o pai de Gui, se não lhe desse algo. Não sabia o quanto se arrependeria por tomar uma decisão tão temerária!
     Ao ver Angina, foi exatamente isso que Gui sentiu. Sentiu apertar-lhe o peito, faltar o ar. Seu coração quase parou de bater. Foi amor à primeira vista. Quando seu pai lhe disse que aquela moça não era tímida, mas um robô desligado, já era tarde demais. Gui, encantado que estava, já não tinha ouvidos para mais nada. Agradeceu o presente, e a levou para o quarto. Carregou sua bateria na tomada do ventilador, e a ligou. Por algum descuido, talvez, levou um choque, em algum lugar. Teve certeza de que Angina é uma garota chocante, e começou a rir. Programada a aprender com as reações humanas, Angina reproduziu seu gesto, rindo às gargalhadas. Gui sentiu no ar um agradável clima de cumplicidade. Ela era, mesmo, encantadora.
     Olhando direito, para Angina, com aquele olhar já apaixonado, Gui não podia acreditar. Ela o observava com a mesma expressão. Talvez, fosse apenas porque é programada a aprender com os humanos, claro. Seu pai já lhe alertara a respeito. Mas ele teve a clara convicção de que ela lhe retribuía o amor que ele por ela sentia. Levou-a para apresentá-la ao pai, que a cumprimentou, friamente, tão-somente para programá-la. Gui ficou sentido. Angina não sabia exatamente qual dos dois deveria imitar: o seu dono ou aquele que com ela interagia. Pela primeira e última vez em sua "vida", se é que assim se pode chamar sua existência funcional, ela escolheu pelo critério da interação. Isso não viria a se repetir, porque os seus sensores detectaram a grande insatisfação e Gui.
     Talvez fosse melhor com sua mãe. "Mãe, esta é Angina.". Com desdém, a genitora olhou de lado, e não deu atenção ao androide. "Mãe?", "O que é, meu filho?", "Esta é Angina". Silêncio. "Mãe?", "O que é que você quer? Que eu converse com um robô?". Angina, definitivamente, programaria sérias restrições a apresentações e cumprimentos.
     E, assim, Gui teve o cuidado de ensinar tudo o que podia a sua amada. Ensinada sobre seu universo particular, ela parecia pronta para ser apresentada aos seus amigos. Alguns a acharam muito fria. No sentido de comportamento, claro. O funcionamento dos circuitos e mecanismos a mantinha agradavelmente aquecida. Poucos de fato notaram se tratar de um andróide. Muito sensuraram Gui, porque ele a apresentava como sua namorada! Os demais afirmavam que ela parecia ter sido feita para ele. Ele não negava de todo tal afirmação, pois ela fora, mesmo, feita sob encomenda. Toda a produção era feita sob encomenda, e com aparência personalizada. O pai de Gui usou critérios próprios para definir como ela seria, mas teve o cuidado de acrescentar detalhes que conhecia sobre a opinião do filho.
     Mas, certa vez, caiu uma chuva. Angina suportava chuvas, e o contato moderado com água, sem problemas. Mas a chuva foi muito intensa. "A precipitação do dia superou em muito os milímetros esperados para todo o mês", declararam os meteorologistas. E Angina não estava pronta para ter água acima de sua sinuosa cintura. Vazou água para dentro de Angina, e os circuitos pifaram. Sem poder se defender, e muito pesada para ser protegida por Gui, ela foi arrastada pela correnteza. Gui culpou os céus por sua perda, como costuma fazer quem perde o grande amor de sua vida. Buscou por ela em toda a parte, mas era tarde. Ele ficou inconsolável.
     Após semanas, ela foi encontrada em um mangue, próximo do encontro do rio com o mar.
     Gui não pensou duas vezes: foi ao encontro de sua amada! Ela estava muito danificada. Seu pai pensou que talvez fosse melhor, que talvez isto desfizesse o encanto. Mas o verdadeiro amor é incondicional. Gui a levou para a fábrica, para ser reconstituída. Declararam perda total, e ofereceram-se para construir uma nova. Gui perguntou se trocariam o amor de suas vidas por outra, somente porque ela estava em coma. O agrumento foi forte, pois um dos cientistas responsáveis pela criação tinha uma esposa em coma havia dois meses. Mas, claro, argumentaram que ela era um robô, um objeto, algo plenamente substituível. Arrependeram-se pelo dia em que nasceram.
     Indignado, Gui saiu pelo mundo para encontrar algum cientista disposto a encarar o desafio de "ressuscitar" Angina. Mas sua tecnologia era muito avançada. Algumas empresas concorrentes ainda pediram para analisá-la, com o objetivo não declarado de estudar a possibilidade de entrar no mercado com um produto concorrente. Mas não puderam compreender exatamente todos os seus inovadores mecanismos.
     Após meses, Gui já não comia, não saía de seu quarto, não se banhava, não se cuidava. Queria morrer com Angina em seus braços. Bem, na verdade, Angina era muito pesada, então ele queria morrer nos braços de Angina.
     No auge de seu desespero, os pais de Gui o internaram numa clínica. Como se recusa a comer, ficou no soro. Como queria sempre retirar o soro, permanece dopado. Mas em seu olhar distante não parece perder de vista o sonho de encontrar Angina, viva e funcionando bem, para que ela acabe com sua dura dor no coração.

Pablo de Araújo Gomes, 12 de fevereiro de 2010

Um comentário:

  1. Gui me parece Narciso. Apaixonou-se pela sua imagem refletida em Angina. Só um robô seria capaz de tamanha similaridade. Como convencê-lo a esquecer do grande amor da sua vida: "ele mesmo"?
    Engraçado que, no exato momento em que ele decide parar de viver, condena Angina a morte. Lindo texto, Menino Bonito.
    (P.S: algumas palavras estão com letras trocadas por causa da pressa em digitar)

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Pablo de Araújo Gomes