sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Despedida

     Ele desligou o carro, retirou a chave da ignição e a devolveu à ignição. Saiu. Não precisava mais se preocupar que alguém levasse o carro. Quem o faria? Olhou em volta e apreciou a beleza da desolada paisagem. A escuridão da noite se aproximava aos poucos, entre os prédios no horizonte oriental, mas, diferente de todos os dias, as luzes das janelas não acendiam.

     Nas ruas, nenhuma viv'alma. Nos estacionamentos um carro ou outro sobrava perdido. Os demais seguiram com seus respectivos donos.

     Era difícil de entender como se chegou àquele ponto. O que houve? O que poderia ter sido feito para evitar. Não sabia.

     Fez a volta no carro e abriu o compartimento traseiro. Já estava cheio, mas, era preciso achar mais espaço. Lembrou-se da esposa, mais cedo, lamentando ter um carro popular, pequeno. E da sua resposta, lembrando que pelo menos possuíam um carro. Muitos tiveram que partir com o que conseguissem carregar em mochilas e nas mãos.

     Mas, a quem queria enganar? Aonde iriam? Ninguém sabia! Logo, o tanque cheio de combustível estaria vazio, e não havia mais onde abastecer. O que fariam? Naturalmente, pegariam o que coubesse nas mochilas e nas mãos, como todo mundo.

     Entrou em casa.

     Tantas memórias, tantos objetos a muito custo comprados... tudo ficaria para trás. Não caberiam no carro, nem nas mochilas, nem nas mãos. Ficaria tudo para trás. Suas medalhas, conquistadas na juventude, as lembrancinhas feitas por seus filhos na escola, no dia dos pais... permaneceria tudo exposto em sua casa, como num museu sem visitantes.

     Era preciso pegar alimentos. Foi para a cozinha. A dispensa não tinha muitas alternativas, então pegou o que lá havia. Não havia mais mercado para abastecer.

     Tentava recapitular o que acontecera. Foi tudo muito rápido. Não teve aquele desespero de fim de mundo. Não houve aquele atropelar de acontecimentos, aquela difusão de pessoas partindo em desordem e caos. Havia sido como um melancólico fim de festa, quando ninguém mais vê sentido em ficar. Todos sabiam que era insustentável. Inclusive ele! Por que ele resistira tanto a partir?

     Matutava essas e outras questões, incapaz de encontrar respostas. Parecia agora óbvio que o desfecho seria aquele. Tudo parecia muito natural, naquele momento. Mas, não antes. Um dia antes, ele parecia encontrar esperanças de que tudo se resolveria. Três dias antes, ele não apostaria que as pessoas deixariam tudo para trás. Uma semana antes, ele jamais acreditaria se dissessem que algo assim um dia aconteceria.

     Olhou para o violão, e largou todos os alimentos de lado. Tinha que levar o violão. Talvez, aquele objeto fosse aquela coisinha que livraria ele da loucura. Mas, por quanto tempo? As cordas velhas, que ele tanto postergara trocar, não durariam muito. E não. Ele não conseguia encaixar o violão e o alimento no carro. Que sandice! Largou o violão.

     O que justificaria as grandes metrópoles virarem verdadeiras cidades fantasma?

     Recolheu os alimentos, novamente. Levou para o carro, e reorganizou tudo o que estava lá dentro. Não caberia mais uma lâmina de barbear dentro do veículo, sem provocar um transbordamento. E ainda tinha de caber sua esposa e os dois filhos, de algum modo espremidos lá dentro. Será que os encontraria?

     O céu estava escuro, agora. Nada fora do normal com a iluminação pública. Um poste com problemas, piscando; outro ali e mais um acolá com a lâmpada queimada. Mas, nenhuma casa ostentava lâmpadas acesas. Só a sua.

     Ninguém nas ruas outrora tão movimentadas.

     Desolador.

     Solitário.

     Tomado de uma angústia profunda, entrou no carro, girou a chave, acendeu os faróis e deu partida. É agora ou nunca!

     Como a todos ocorrera, também seu tempo ali já era. Partiu.