sábado, 19 de dezembro de 2009

Sem Amarras

     Os insensíveis que me perdoem, mas arte é fundamental.
     Aliás, também hão de me perdoar os pseudossensíveis, aqueles que tentam impor amarras à arte, dizendo "arte tem que ser assim", "arte tem que ser assado"... Arte é expressão, Arte é natural. E reflete um momento histórico ou status social de quem a faz, mesmo que não queira. Eu, pessoalmente, não gosto do que chamam hoje de Funk, só para ficar num exemplo. Na verdade, como em nada se parece com o funk histórico, poderíamos abrasileirar, também, o nome: chamemo-no de fanque. Não gosto dele, de fato, mas não posso negar seu caráter artístico. Mas, assim como a Bossa Nova refletia a busca por uma suavidade e sofisticação essencialmente brasileira, baseando-se no samba, por parte de uma elite intelectual em pleno borbulhar cultural, o fanque reflete a podridão cultural de uma camada excluída dos benefícios a que deveria ter manifesto direito, entre eles, a própria educação. O que esperaria deles? Havia um tempo em que existiram Adonirans Barbosas, Pixinguinhas, Noéis Rosas, eu sei, no morro, na vila, na favela, mesmo quando havia altos índices de analfabetismo. É verdade, eu não nego, mas chegamos aonde chegamos por um processo longo, que foi catalizado pela total ausência do estado justo no primeiro momento posterior à revolução sexual.
     Calma, não se alarme pelas minhas comparações. Na verdade, sequer houve uma comparação, houve paralelos. E também não estou aqui para defender ou criticar o fanque (ou o funk). Isto fica para a próxima, quem sabe?
     Mas, por que há quem diga que um poema, para assim sê-lo, tem de ter rimas, métrica, ou qualquer outra característica? Ou, por que há de ter de haver arte pela arte? É uma ilusão, tenho dito. E acho até muito interessante e louvável que se use do poder da arte para defender uma causa. Brecht foi apenas um (um dos melhores, claro, mas apenas um) dos muitos que ostentaram uma ideologia através da maestria em sua arte. Mas a arte não se limita a isso! Você não tem nem que concordar com o que diz a sua obra. Arte é criação, Arte é liberdade! Não se iluda com o que digo, ou com o que dizem os artistas em suas obras. Arte é questionamento, Arte é provocação! Você deve, mesmo, meditar a respeito. Não aceite, nem rejeite de cara;  depois de pensado, no entanto, tome um partido que lhe pareça certo, não fique sobre o muro. Mesmo, aliás, que, posteriormente, mude de opinião. Talvez seja uma boa razão, até, para evitar radicalismos, não por insegurança, mas por saber que a verdade é um mistério, e nós temos visão limitada. Quem sabe se, afinal de contas, estamos certos ou errados, num embate? Às vezes, há tanta certeza, e tantos morrem por este engano.
     Mas, também não vim falar de tomar decisões. Estou para lembrá-los, todos, de que a arte não pode ter amarras. Aliás, serei agora contraditório. Na arte é preciso bom-senso. Se você propaga idéias com as quais não concorda, esteja seguro de que aquilo não será nocivo a alguém, ou de que, se a idéia for ofensiva a alguém, você é plenamente responsável pelo que veicula. Esta é uma amarra terrível. Mas não é o fim do mundo, se você tem bom-senso. Ou é bom senso, mesmo? Ai, ai, esta reforma ortográfica nos confunde até no que não foi mexido... Mas, o que eu falava, mesmo?
     Pois, sim. Eu dizia que a arte não tem que ter amarras externas. Você não tem que se enquadrar numa escola. Nisso, viva a modernidade e a globalização! Só assim, temos contato com tantas formas e opções, para aprendermos que não é necessário se enquadrar tanto para ser aceito. Hoje, há fãs incondicionais de Machado de Assis, como há os de Álvares de Azevedo; admiradores e leitores incansáveis de Harry Potter  (J. K. Rowling) e companhia, como há os encantados leitores de Iracema. Cada um tem seu nincho no mercado. Ninguém começa a ler por Eça de Queirós, ou com Iracema. Ninguém começa com o genial Navio Negreiro, de Castro Alves. E, a menos que tenha crescido ouvindo, ninguém diferencia um Mozart de um Vivaldi, ou de um Bach (tão distintos), se não houver curtido e, talvez, até, estudado. Às vezes, para despertar este interesse, é preciso recorrer ao cancioneiro popular, ou outras músicas infantis, por exemplo, como muito bem compreendeu o nosso gênio musical, cem por cento brasileiro, Heitor Villa Lobos.
     Claro que, quem nasce e cresce ouvindo fanque tem muito menos chances de ouvir Vila Lobos, um dia, e gostar. E, provavelmente, não vai se interessar em diferenciar Bach de Mozart, benza-lhes Deus! Mas haverá quem ouça, enquanto houver o nicho cultural em que se enquadram. A mim, me ferem o ouvido e a paciência, e não suporto ficar com suas músicas (sim, se admito que é arte, tenho que enquadrá-los de algum jeito; que seja como música, então) emaranhadas em minha cabeça, por dias a fio, louco para estourar cada caixa de som que lhes reproduz.
     Acho que não vou escrever mais a crônica sobre o fanque. Acabo de escrever uma dentro dessa. Mas, de fato, Raul Seixas não acreditava que havia nascido há dez mil anos atrás, e alguns malucos acreditaram. Isso o encorajou a mandar todos tentarem outra vez, e isso salvou muitas vidas. Mas, se ele quisesse, poderia ter dito qualquer coisa, como também falou de discos voadores que não via, e confessou esconder garrafas de bebida enrustidas na Bíblia. Grande Raulzito, sabia do que eu tô falando. Plunct, Plact, Zum, o segredo do universo... Sério? Brincadeira? Não importa. Arte!


Pablo de Araújo Gomes, 19 de Dezembro de 2009

5 comentários:

  1. ESSE COMENTÁRIO SAIU COMO NOME DO AUTOR, MAS É MEU!

    Foi interessante:
    Mas o tema é tão denso, que você escreveu de forma, também, densa.
    Quem tiver preguiça de ler, não vai ter a oportunidade de aproveitar o texto.

    Pra mim, FUNK (OU FUCK YOU), não é arte: é subproduto de alguma arte que não me agradaria.

    Assim como os subprodutos de samba, que chamam por aí de PAGODE; Pra mim, pagode é a festa do quintal, do terreiro, ONDE SEMPRE ROLOU UM SAMBA-CANÇÃO DE QUALIDADE, UM SAMBA-EXALTAÇÃO QUE LEVAVA O QUINTAL AO ÊXTASE.

    Sou preconceituoso, sim:
    FUNK NÃO É ARTE; SUB-SAMBA(PAGODE) NÃO É ARTE; SÃO ESPASMOS DE LETRISTAS POBRES E GERALMENTE DESAFINADOS, QUE AGRIDEM O MUSICAL, ACHANDO QUE FAZEM ARTE.
    E PONTO!

    19 de dezembro

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  2. Pois é o tema é denso e necessitaria de pelo menos uns quatro anos na universidade para discuti-lo. Mas essa ideia toda do fanque (funk para os modistas) me fez lembrar de Afonsos Henrique. E por que lembrou ele? Porque ao contrário de grandes escritores ele foi o contrário de tudo o que se dizia literatura. O escritor bebia muito, nunca ganhou dinheiro com seus livros, morreu sem ser reconhecido pelo público, era considerado louco. Hoje, algum tempo depois, é considerado o precusor do pré-modernismo. Quem nunca leu "Tiste Fim de Policarpo Quaresma"?

    Sim, mas voltando ao fanque é interessante notar que a contracultura tão festejada hoje era considerada no mínimo subversiva. Ou então de má qualidade. "Os Sapos" de Manuel Bandeira foi vaiado na Semana de Arte Moderna. Quem gostaria de ler ou ouvir, "meu pai foi à guerra? Foi!.. não foi! foi!"? E aí? Mas vamos mais adiante... Heitor Vila Lobos, foi vaiado também porque entrou no palco de chinelo. COnsiderado um futurista. Ou seja, antes das pessoas saberem que ele estava de sandália por um outro motivo, vaiaram.

    O fanque, que considero cultura já que é a manifestação de um grupo social tem muito o que mudar para mim, para você, ou para aqueles que não gostam de tal ritmo e música. Mas, é inegável. É cultura!

    Isaac Melo

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  3. Heitor Villa Lobos, como estes demais, foi um gênio inovador, sem dúvida. Mas o episódio, como você bem sabe, foi uma unha encravada, que muito lhe doía. A contracultura que hoje festejamos era em essência uma desconstrução, quase sempre consciente desta condição, e, por isso, revolucionou de forma positiva. O Modernismo tinha este mesmo espírito de questionamento e inovação consciente de seu papel. Do fanque, não se pode dizer o mesmo, visto que se trata de um produto de um meio doente, em que sequer há consciência da real condição que leva à sua criação.

    Mas, reafirmo o que eu disse acima. Arte, sim. Música, sim. De péssima qualidade, subproduto de um ambiente doente, fruto de uma árvore envenenada, mas música. Eu o compararia, na verdade, ao Rock, de que gosto tanto, que começou muito semelhante, em termos de conteúdo, ao fanque que conhecemos, com letras vulgarmente erotizadas, mas cuja evolução durante a história da música e da arte, virou uma vasta gama de formas de expressão, quando apropriada por outros meios sociais de conteúdos diferentes.

    De qualquer forma, adorei as participações, e o debate sai bastante enriquecido. Não precisa terminar com a minha palavra, não!

    Sigamos, então!
    Abraços,
    E Obrigado!

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  4. Parece que já li crítica parecida sobre o fanque como esta tua. Aliás, como a nossa. Mas eu não posso deixar despercebido que isso já aconteceu diversas vezes na história da arte sobretudo brasileira, como já citei. Retomando o exemplo da Semana de Arte Moderna, o que naquela época era ruim, hoje é um marco, considerado até o início de uma nova arte, a moderna. Este música mais populariazada no sudeste, tem características que para hoje é, no mínimo, esdrúxulas. Quando penso nos bailes fanques, penso em mulheres loiras, morenas e mulatas, malhadas, com roupas extremamente curtas, se esfregando ou rebolando entre elas mesmas ou entre homens. É uma música de apologia a prostituição, ao sexo, a libertação em ambito geral.Mas isso já aconteceu. O movimento hippie, pregando o sexo, e isso era qualquer coisa abusurda na época. É lamentável que exista hoje, mesmo que respeitando o gosto artístico e musical de cada um, essa negação ou ideia de inferioridade de um estilo musical para com outro. Se eles, os fanqueiros, são liberais demais, se são "prostitutos da música", isso pode ser negado hoje, mas considerado um marco entre os intelectuais do futuro. Vê essa reportagem da Folha da Noite (São Paulo - 15/02/1922):
    "A Taratologia Futurista"

    Não é só um problema de estética, mas deve ser estudado como fenômeno da patologia mental. Todas as extravagâncias do Futurismo originam-se de um verdadeiro estado de espírito mórbido.
    O desejo incontido de 'chamar a atenção' e a ingenuidade de certos espíritos desprovidos de qualquer preparo, o desequilíbrio de alguns cérebros e o verdor da mocidade são os principais motivos e o que caracteriza os adeptos desta escola.
    Futurismo e teratologia são expressões sinônimas. Os espíritos que por incapacidade mental não alcançaram o verdadeiro sentido da arte e não atingiram a esperitualidade dos grandes gênios atiram-se ao Futurismo na ilusão de serem 'incompreendidos', pois todo futurista se julga um gênio iludido pela pretensa vaidade"
    --------------------

    Eis aí um exemplo dos críticos intelectuais da década de 1920 sobre a Semana. Não estou aqui comparando a S. de Arte Moderna ao fanque e sim mostrando que, o que antes era teratologia, hoje é marco na arte. E por que isso não aconteceria com o fanque?

    É complicado julgar uma arte pelo fato de não gostar.

    Isaac Melo

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  5. Está bem, está bem, vocês ganharam! Teremos uma crônica especialmente sobre o "fanque", ok? hehehe! Espero tocar fogo no debate, de uma vez por todas, ou enganá-los com a ilusão de exaurir o assunto... eu sou, mesmo, um cara mau...

    Por enquanto, ultrapassando o conceito do fanque, em algo mais lhes provoca o texto?

    Abraços!
    (estou adorando o debate, não desistam!)

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Sua sinceridade é o meu maior trunfo! Então comentem com vontade. A moderação dos comentários objetiva, apenas, garantir que eu não fique sem os ler, um por um! Obrigado!
Pablo de Araújo Gomes