sábado, 1 de agosto de 2015

Direitos

Aquele jovem simpático ali do lado tem síndrome de Down. Aquela senhora, não. Ela é deficiente auditiva, diferentemente daquele outro rapaz, que ouve muito bem. Ele é daltônico, mas o senhor do lado não o é. Não é, mas, tem miopia avançada, e aquela moça bonita não tem. Ela é negra, que não é deficiência auditiva, não é limitação, não faz dela pior nem melhor, mas deixou de conquistar um emprego por isso. E é mulher, o que o rapaz daltônico não é. O rapaz daltônico é homem, assim como o senhor míope e o jovem com Down. Um deles é rico, e os outros não são.

Tem um homossexual nesse grupo. E alguém é soropositivo (tem o vírus HIV, mas, ainda não desenvolveu AIDS). Não são a mesma pessoa, mas poderiam. Nesse grupo, alguém é virgem, e alguém é do interior. Pode ser a mesma pessoa, mas, podem não ser. Alguém é da capital e alguém que não está no grupo é avô.

Alguém que não está no grupo quer entrar, mas, o grupo não deixa, porque esse alguém é oriental. Oriental. Pode ser japonês, coreano, chinês, tailandês... pode ser mongol, e não tem, definitivamente, síndrome de down.

O grupo aceitou um turco, após constatar que ele não é sovina. Não perceberam, ainda, que essa fama dos turco é preconceito. O turco vai entrar no grupo, mas, anda reticente porque soube que alguém no grupo é judeu. Um índio pediu para entrar.

Um outro índio disse que esse grupo não o representa, porque tem um evangélico no grupo achando que os índios que não aceitarem Jesus irão para o inferno. Ele não acredita no inferno, nem em Jesus. Chegou de fora do grupo um crente de mórmon defendendo que Jesus também contempla os ameríndios.

Alguém acha que a atitude do crente mais radical é errada, porque ele afasta as pessoas, em vez de as atrair. Outro concorda, mas, acha que é preciso conquistar fiéis. Um evangélico crente de fora do grupo acha que Jesus chamou, mas, não incomodou ou obrigou ninguém.

Alguém de fora se juntou ao índio anti-grupo, e separou "eles" (o grupo) de "nós" (os que não são do grupo), e achou que o grupo merecia rechaço público e social. O pessoal do grupo se divide entre os que acham legítimo manter a distinção para defender o grupo, e os que acreditam que é preciso se misturar com o mundo lá fora, para não aumentar o preconceito contra o grupo. Ambas opiniões têm eco fora do grupo, mas, a maioria dos membros do grupo acha que quem é de fora não tem legitimidade para pensar por eles.

O  oriental era japonês e está fazendo confusão, porque não quer um coreano no grupo. Alguém corre com medo de um golpe de karatê, como se todo japonês lutasse. O coreano se ofendeu com a comparação. Parece que suas nações não se dão muito bem. "Mas, não são todos iguais? Não têm olho puxado?", alguém pergunta. Um chinês de fora do grupo também se ofendeu com o comentário.

Um branco ocidental de dentro do grupo faz piada sobre o pênis pequeno do japonês, e um negro de fora do grupo riu. Um negro de dentro do grupo reclamou da hipersexualização do negro, apesar de seu pênis ser, mesmo, estatisticamente maior que a média. Mas, só o japonês havia sido mencionado, até então. Alguém que é virgem se escandalizou com o debate tão indecente, e alguém fez chacota por ele se escandalizar tão fácil: "na sua terra tem semáforo? A coca-cola já chegou lá?"

O daltônico escutou a discussão pela metade e reclamou que tantos façam questão do semáforo, cujas cores não contemplam toda a população. Não é justo que ele seja excluído. A senhora com deficiência auditiva lembrou de ajustar o aparelho auditivo, e também acha que o mundo deve se adaptar a sua deficiência. Todos acham boa ideia usar sinais visuais par a sua deficiência e elogiam a eficiência do semáforo, para escândalo do daltônico.

Num canto, discute-se Jesus ou não Jesus, ou se Jesus veio ou não à América; n'outro, judeu briga com turco; homossexual discreto ofende homossexual que dá pinta; alguém que está brigando por causa de tamanho de pênis ofende o soropositivo que não é homossexual, e sua reação ofende o homossexual que não é soropisitivo; homossexual soropositivo de fora do grupo culpa a todos pelo preconceito; enquanto as vozes se elevam, uma flecha atravessa o grupo, e todos culpam o índio, que nada teve a ver com isso; no meio do tumulto, uma mão masculina acerta acidentalmente uma mulher, que corre para denunciar a violência de gênero (mas, não admite que o filho brinque de boneca); outro sai de perto da bagunça, e culpa o governo dos EUA pela confusão instalada: "qualquer um pode ver isso", diz, e arranja briga com o míope, que chegou no fim da conversa e não acha que qualquer um possa ver o que quer que seja; alguém de fora do grupo descobre nordestinos no grupo, e parte para agredir o grupo; o homossexual acha que foi homofobia, a negra pensa que foi racismo, e o nordestino... o nordestino não pensa nada a respeito, pois ninguém chegou a ele, enquanto ele começa a espancar o índio pela flecha; alguém de torcida organizada dentro do grupo descobre torcedor de time adversário fora do grupo, e ataca; fora do grupo, acusam todo o grupo pela violência; a polícia reage e manda o choque cercar o grupo; black blocks aparecem, para proteger o grupo, e tocam fogo em agências bancárias; alguém acha que o "black", de black blocks, é um termo inapropriado, porque são brancos, e entram na briga; outros acham que é inapropriado porque black blocks são vândalos, e, por meio da programação neurolinguística, as pessoas serão mais preconceituosas contra negros por causa do uso da palavra "black"; os dois grupos brigam entre si e contra os black blocks; a polícia abusa das balas de borracha e spray de pimenta, e acerta um black block que é negro, e que é anarquista proveniente da classe A; um negro que é contra os black blocks critica a polícia, e a acusa de fazer dele um alvo porque ele é negro; a briga se espalha pelo país, e o clima de ódio ganha as manchetes no mundo todo. Alguém culpa um determinado partido, e pede a ditadura; a confusão política esquenta, e partidos oportunistas se aproveitam do clima para se promover, e para isso alimentam o ódio; linchamentos, ataques e brigas se multiplicam pelas ruas; quando os protestos violentos são realizados por ricos, a polícia os protege, claro; protestos contra a violência terminam em brigas e depredação; alguns culpam aquele grupo por isso, e o grupo culpa pela confusão o preconceito contra o grupo; enquanto isso, alguns dos que vêem tudo pela televisão acham que só brigando assim, para se conquistar alguma coisa; outros defendem a luta pacífica, sem toda essa confusão; outros, por sua vez, acham que todos são baderneiros e pronto; e tem sempre os que acham que tanta confusão é falta de roupa pra lavar e alguns outros que dizem que isso tudo não vai dar em nada.

Sou um privilegiado: homem, branco, classe média, instruído, heterossexual, nacional no país em que vivo, não sou soropositivo, nem porto deficiência física ou mental, temporária ou definitiva. Olho a briga penalizado com o rumo que tudo toma. Muita confusão, mais segregação, nenhuma solução. Mas, olho de longe, porque assim me é imposto. Não sou legitimado por nenhum deles para falar por qualquer que seja.

Pena! Pessoalmente, preferiria me juntar a todos, para defendermos juntos nosso direito de ser gente.

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Pablo de Araújo Gomes